Achim von Arnim

O inválido enlouquecido do Forte Ratonneau

 

Tradução de Karin Volobuef

 

Em outubro, numa noite de ventos gélidos, o conde Dürande, o velho e bom comandante de Marselha, estava sentado sozinho e com frio junto à mal provida lareira de sua luxuosa residência de comando e ia aproximando sua cadeira mais e mais para junto do fogo, enquanto as carruagens passavam na rua dirigindo-se a um grande baile, e seu criado particular, Basset, que ao mesmo tempo era seu acompanhante preferido, roncava vigorosamente na ante-sala. "Mesmo no sul da França nem sempre é quente", pensava o ancião, e balançava a cabeça, "mesmo aqui as pessoas não permanecem jovens para sempre, contudo, a vivaz agitação das reuniões sociais tem tão pouca deferência pela velhice como a arquitetura pelo inverno". O que haveria ele, o chefe de todos os inválidos que naquela época (durante a Guerra dos Sete Anos) constituíam a guarnição de Marselha e seus fortes, de fazer no baile com sua perna de pau? Sequer os tenentes de seu regimento teriam qualquer valia para a dança. Aqui junto à lareira, ao contrário, e já que não desejava acordar Basset, sua perna de pau parecia-lhe extremamente útil para aos poucos ir empurrando para as chamas o estoque de ramos de oliveira verdes que mandara dispor ao seu lado. Um fogo desses tem grandes atrativos: a chama crepitante está como que entrelaçada à verde ramagem, e as folhas, que em parte estão queimando e em parte estão verdejantes, lembram corações apaixonados. Isso levou o velho senhor a pensar no fulgor da juventude, e a mergulhar em considerações sobre os fogos de artifício que havia organizado para a Corte, passando a imaginar novos, que lançariam raios e círculos de cores ainda mais variados e com os quais pretendia surpreender os marselheses no aniversário do rei. Em sua cabeça tudo parecia agora ainda mais vazio do que no baile. Mas, antevendo já a cena com tudo irradiando, zunindo, estalando para em seguida resplandecer com serena grandiosidade, ele havia, na alegria pelo êxito, deitado cada vez mais ramos de oliveira no fogo, sem perceber que sua perna de pau pegara fogo e um terço dela já estava queimado. Somente quando quis erguer-se de um salto porque o grande encerramento com a subida de milhares de foguetes dera asas inflamadas à sua imaginação, deu-se conta, recostando-se de volta à sua cadeira estofada, que sua perna de pau estava mais curta e que, além disso, o restante dela se encontrava sob perigosas chamas. Perante o apuro de não poder levantar-se de pronto, empurrou sua cadeira como uma canoa, usando à guisa de remo a perna incendiada, até o centro do cômodo, chamou pelo criado e então pediu água. Nesse momento, precipitou-se solícita em seu socorro uma mulher que havia sido introduzida no aposento e já há muito, embora sem sucesso, procurara chamar para si a atenção do comandante com discretas tossidelas. Ela tentou apagar o fogo com seu avental, mas o carvão em brasa da perna pôs o avental em chamas, e o comandante gritou, agora em verdadeiros apuros, chamando por socorro, chamando por pessoas para acudi-los. Dentro em pouco estas acorreram vindo da rua, também Basset havia acordado; o pé queimando, o avental queimando levaram todos ao riso, e com o primeiro balde de água que Basset trouxe da cozinha, tudo estava apagado e as pessoas se despediram. A pobre mulher tinha as roupas encharcadas e ainda não conseguia se recobrar do susto, o comandante mandou que a agasalhassem com seu grosso sobretudo e que lhe servissem um cálice de vinho forte. Mas a mulher recusou tudo, continuando apenas a soluçar por causa de seu infortúnio, e pediu ao comandante para dizer-lhe algumas palavras a sós. Assim sendo, ele mandou seu negligente criado retirar-se, e sentou-se com desvelo perto dela.

- Ah, meu marido, - falou ela em francês com um estranho sotaque alemão - meu marido ficaria desvairado se ouvisse falar dessa história; ah, meu pobre marido, aí o diabo certamente lhe pregaria mais uma peça!

O comandante perguntou pelo marido, e a mulher disse-lhe que era justamente por causa desse seu amado marido que viera vê-lo a fim de entregar-lhe uma carta do coronel do regimento da Picardia. O coronel colocou os óculos, reconheceu o brasão de seu amigo e percorreu a missiva, depois disse:

- Portanto a senhora é esta Rosalie, que quando solteira era a mademoiselle Lilie de Leipzig, a qual se casou com o sargento Francœur quando ele era prisioneiro em Leipzig com um ferimento na cabeça? Conte-me sobre este amor tão raro! Quem eram seus pais, eles não puseram empecilhos em seu caminho? E quais são os caprichos curiosos que seu marido passou a ter em conseqüência da ferida e que o renderam incapacitado para o serviço no campo de batalha, embora tivesse a fama de sargento valente e habilidoso e fosse considerado a alma do regimento?

- Meu senhor, - respondeu a mulher novamente consternada - meu amor é o culpado de toda essa infelicidade, fui eu que tornei meu marido infeliz e não aquela ferida; meu amor levou para dentro dele o diabo, e este o atormenta e confunde seu juízo. Ao invés de exercitar os soldados , às vezes ele começa a exibir-lhes saltos monstruosos que o diabo lhe ensinou, e exige que eles imitem esses saltos; outras vezes, ele lhes mostra caretas que os deixam transidos de susto, e exige que ninguém mova um dedo sequer enquanto isso; e, há pouco tempo, veio finalmente a gota d’água, quando, no momento em que o general em chefe dava ao regimento durante uma batalha a ordem de retirada, ele lançou o general do cavalo, montou e conduziu para longe a bateria junto com o regimento.

- Um sujeito dos diabos, - exclamou o comandante - quisera que um demônio desses entrasse em todos os nossos generais em chefe, assim não haveríamos de recear a repetição do episódio de Roßbach; se o seu amor fabrica tais demônios eu desejaria que amasse o nosso exército inteiro.

- Infelizmente, com a maldição de minha mãe, - suspirou a mulher. - Não cheguei a conhecer meu pai. Minha mãe recebia muitos homens em sua casa, aos quais eu devia servir à mesa, esta era minha única tarefa. Eu era distraída e não dava atenção às palavras amáveis desses homens, minha mãe protegia-me contra suas importunações. A guerra dispersou a maioria desses cavalheiros, que visitavam minha mãe e jogavam em segredo jogos de azar em sua casa; desde então nós vivíamos, para o desgosto de minha mãe, bastante solitárias. Amigos e inimigos eram-lhe por isso igualmente odiosos, ela não me permitia sequer levar um donativo a alguém que passasse ferido ou esfomeado diante de nossa porta. Isso me causava grande lástima, e certa vez, quando estava totalmente só preparando nosso almoço, várias carroças passaram com feridos, os quais eu reconhecia pela língua como sendo franceses que haviam sido aprisionados pela Prússia. Momento após outro estive prestes a ir levar-lhes a comida pronta, contudo tinha receio de minha mãe; porém quando vi Francœur deitado na última carroça com a cabeça enfaixada, não sei o que aconteceu comigo; esqueci-me de minha mãe, apanhei a sopa e uma colher e, sem trancar nossa casa, apressadamente segui até a Pleißenburg ao encalço da carroça. Encontrei-o; ele já descera da carroça. Com ousadia dirigi a palavra aos guardiões, e pouco depois já tinha conseguido o melhor catre de palha para o ferido. E quando ele lá estava alojado, qual não foi minha alegria ao servir a sopa quente ao necessitado! Seus olhos avivaram-se e ele jurou que eu trazia uma auréola de santa sobre a cabeça. Respondi-lhe que isso era minha touca, que se entreabrira durante meu pressuroso desvelo ao cuidar dele. Ele disse que a auréola vinha de meus olhos! Ah, não pude mais esquecer estas palavras e, se ele já não possuísse meu coração, teria que entregá-lo a ele por isso.

- Palavras bonitas, verdadeiras! - disse o comandante, e Rosalie prosseguiu:

- Esta foi a época mais bela de minha vida, eu me dedicava cada vez mais a observá-lo, pois ele afirmava que isso lhe fazia bem, e, quando por fim enfiou um pequeno anel em meu dedo, senti-me rica como nunca . Em meio a esta serena felicidade chegou minha mãe proferindo repreensões e insultos; não posso repetir-lhe os nomes com que ela me chamou, mas não fiquei vexada pois eu sabia que era inocente e que ele não haveria de pensar nada de mau. Ela queria arrancar-me de lá, mas ele segurou-me e disse-lhe que nós estávamos noivos, que eu já usava seu anel. Como o rosto de minha mãe se contorceu! Tive a impressão de que uma labareda saía de sua garganta, e os olhos revolveram-se para dentro, parecendo totalmente brancos; ela me amaldiçoou e, com palavras solenes, encomendou-me ao diabo. E, se de manhã eu me sentira como se um raio de luz atravessasse meus olhos no momento em que avistei Francœur, agora tive a impressão de que um morcego escuro estendia seus élitros opacos sobre meus olhos: o mundo estava parcialmente cerrado para mim e eu não me pertencia mais por completo. Meu coração desesperou-se e fui forçada a rir. ‘Está ouvindo, o demônio já está rindo de dentro de você!’ disse minha mãe e foi embora triunfante, enquanto eu caía desfalecida. Quando voltei a mim, não ousei ir procurá-la, pois não desejava afastar-me do ferido, para quem o episódio tivera conseqüências nocivas; por assim dizer, eu afrontei minha mãe em segredo por causa do dano que ela causara ao infeliz. Somente ao anoitecer do terceiro dia dirigi-me furtivamente para casa, sem nada dizer a Francœur; não ousei bater. Por fim, saiu de lá uma mulher, que nos havia servido, e informou que minha mãe vendera às pressas todos os seus pertences e partira, ninguém sabe para onde, com um cavalheiro estranho de quem se dizia ser um jogador. Desse modo, eu me achava só no mundo, e foi um alívio atirar-me, assim desvencilhada de quaisquer considerações, nos braços de meu Francœur. Também minhas amigas de juventude na cidade fingiram não me conhecer, portanto pude viver exclusivamente para ele e para seus cuidados. Trabalhei para ele; até então eu apenas brincara com os bilros de fazer renda o suficiente para me enfeitar, agora eu não me envergonhei de vender esses meus trabalhos manuais: isso proporcionava agasalho e sustento para ele . Não conseguia, porém, deixar de pensar em minha mãe nos momentos em que ele não estava me entretendo com a vivacidade de suas narrativas; mentalmente, via minha mãe sombria, com olhos chamejantes, sempre praguejando, e não conseguia livrar-me dela. Eu não queria dizer nada ao meu Francœur para que ele não sentisse um peso em seu coração; eu me queixava de dores de cabeça que não tinha, de uma dor de dente que não sentia, só para poder chorar como necessitava. Ah, se naquela época eu tivesse tido mais confiança nele não teria causado seu infortúnio, mas sempre quando pretendia contar-lhe que acreditava estar possuída pelo diabo por causa da maldição de minha mãe, o diabo vedava minha boca; além disso, eu receava que ele então não pudesse mais me amar, que haveria de me abandonar, e bastava esse pensamento para eu quase sucumbir. Este tormento interior, possivelmente também o trabalho fatigante, acabou arruinando meu corpo; fortes espasmos, que eu ocultava dele, ameaçavam sufocar-me, e remédios pareciam apenas multiplicar esses padecimentos. Tão logo ele se restabeleceu, marcou a cerimônia de casamento. Um velho sacerdote fez um discurso solene no qual recordava a meu Francœur tudo o que eu fizera por ele: como sacrificara a pátria, o conforto e as amizades, e até mesmo recebera a maldição materna; todos esses desgostos ele deveria compartilhar comigo, todo o infortúnio deveria suportar em comunhão. Meu marido estremeceu diante destas palavras, mesmo assim pronunciou um sim inteligível e fomos unidos em matrimônio. As primeiras semanas foram venturosas, eu me sentia parcialmente aliviada de meus sofrimentos e não suspeitei desde logo que uma parte da maldição se transferira para meu marido. Mas em breve ele se queixou de que diante de seus olhos estava constantemente aquele pregador em suas vestes negras e em atitude de ameaça, e que por isso ele sentia uma ira e aversão tão veementes contra clérigos, igrejas e imagens santas que se sentia impelido a ficar rogando-lhes pragas, ainda que não soubesse por quê, e, a fim de afastar esses pensamentos, entregava-se a qualquer idéia que lhe ocorresse: dançava e bebia e, com o sangue assim em movimento, sentia-se melhor. Eu atribuía tudo ao encarceramento, embora suspeitasse perfeitamente tratar-se do diabo atormentando-o. Ele foi permutado mediante a intervenção de seu coronel, o qual sentira muita falta dele no regimento, pois Francœur é um excelente soldado. Partimos de Leipzig contentes e aliviados, e em nossas conversas vislumbrávamos um belo futuro. Mal, porém, saíramos da situação de penúria em relação às necessidades diárias e nos transportáramos para a vida cômoda de um dos alojamentos de inverno do exército bem abastecido, e a impetuosidade de meu marido foi crescendo a cada dia; ele tocava o tambor dias a fio para se distrair, iniciava contendas e querelas, o coronel não conseguia compreendê-lo; apenas comigo ele era terno como uma criança. Quando a campanha militar novamente se iniciou, dei à luz um menino e, cessadas as dores do parto, pareceu que o demônio que antes me atormentara tinha se afastado completamente de mim. Francœur foi ficando cada vez mais petulante e violento. O coronel escreveu-me dizendo que ele não media o perigo e arriscava-se como um doido enfurecido mas até o momento sempre tivera sorte; disse ainda que os seus camaradas acreditavam que ele por vezes ficava enlouquecido, e que temia ser obrigado a enviá-lo para junto dos doentes ou inválidos. O coronel devota-me certa consideração e atendeu meus rogos, até que finalmente, conforme já narrei, sua audácia contra o general em chefe daquele destacamento o levou à prisão. Lá o médico declarou que ele estava acometido de loucura por causa da ferida na cabeça, a qual não recebera os necessários cuidados durante seu aprisionamento, e, para que seu mal eventualmente fosse debelado, deveria permanecer ao menos por alguns anos em região de clima quente dentre os inválidos. Quando lhe comunicaram que deveria se juntar aos inválidos como castigo por seu delito, despediu-se do regimento com imprecações. Eu solicitei a carta do coronel e tomei a resolução de comunicar tudo com franqueza ao senhor a fim de que ele não seja julgado com base no rigor da lei mas com base em seu infortúnio, cuja única causa foi o meu amor, e também a fim de solicitar ao senhor que o transfira, para o bem dele, a algum lugarejo afastado, para evitar que aqui na cidade grande se torne objeto do falatório das pessoas. Mas, prezado senhor, esta mulher, que hoje lhe prestou um pequeno serviço, roga-lhe que dê sua palavra de honra de que guardará silêncio absoluto sobre este segredo da doença, do qual ele próprio nada sabe e que haveria de feri-lo em seu orgulho.

- Aqui está minha mão - exclamou o comandante, que ouvira de bom grado a zelosa mulher, - e, mais do que isso, vou conceder-lhe seu pedido três vezes, caso Francœur faça tolices. Contudo, o melhor seria evitá-las e por isso vou transferi-lo imediatamente como substituto para um forte que necessita de apenas três homens para sua guarnição; a senhora encontrará lá uma moradia confortável para si e seu filho, ele terá poucas oportunidades para desatinos, e aqueles que ele venha a cometer não chegarão aos ouvidos de ninguém.

A mulher agradeceu por estas bondosas precauções, beijou a mão do idoso cavalheiro, e ele, por seu torno, iluminou seu caminho enquanto ela descia a escada fazendo muitas mesuras. Isso deixou surpreso o velho criado Basset, que começou a conjeturar se o seu idoso senhor não teria se envolvido em um caso amoroso com a mulher em chamas, o que viria a diminuir seu poder de influência. Ora, quando à noite não conseguia adormecer, o velho comandante tinha o hábito de refletir em voz alta no leito sobre tudo o que ocorrera naquele dia, tal como se fosse impelido a usar sua cama como confessionário. E, assim foi que, enquanto as carruagens rodavam de regresso do baile mantendo o comandante acordado, Basset ficou à espreita no aposento vizinho e ouviu toda a conversa pela qual nutria interesse redobrado pelo fato de Francœur ter sido seu compatriota e camarada de regimento, não obstante ele ser bem mais velho do que Francœur. E nessa hora pensou imediatamente em um monge que conhecia, o qual já expulsara o diabo de muitos, e decidiu que em breve levaria Francœur para vê-lo; como tinha grande prazer em curandeirismos, regozijou-se com a idéia de novamente poder assistir um demônio sendo exorcizado. Rosalie, muito satisfeita com o sucesso de sua visita, dormira muito bem; de manhã comprou um avental novo e com ele foi ao encontro de seu marido, que vinha conduzindo seus cansados inválidos pela cidade adentro com uma cantoria abominável. Ele a beijou; ergueu-a no ar e lhe disse:

- Você está cheirando ao incêndio de Tróia; tenho-a de volta, minha bela Helena!

Rosalie empalideceu e, quando ele perguntou, considerou necessário contar-lhe que estivera com o coronel por causa da casa, que nessa ocasião a perna dele se encontrava em chamas e que o avental dela ficou queimado. Não lhe agradou que ela não tivesse esperado pelo seu retorno, mas ele esqueceu o caso fazendo dezenas de pilhérias sobre o avental incendiado. A seguir, ele apresentou seus homens ao comandante e elogiou-lhes todas as debilidades de corpo e as virtudes de espírito, fazendo isso com tamanha cortesia que conquistou as boas graças do velho senhor, o qual refletiu consigo: "A mulher o ama, mas é uma alemã e não entende os franceses; um francês sempre tem o diabo no corpo!" Ele o convidou a entrar em seu aposento a fim de conhecê-lo melhor, verificou que tinha bons conhecimentos sobre fortificações e, o que o encantou ainda mais, descobriu nele um pirotécnico apaixonado, que já elaborara em seu regimento toda sorte de fogos de artifício. O comandante descreveu-lhe aquela sua nova invenção para os fogos de artifício no aniversário do rei, a qual fora interrompida ontem pelo incêndio na perna, e Francœur recebeu a idéia com fulgurante entusiasmo. Nesse momento o ancião comunicou-lhe que ele deveria substituir, juntamente com dois outros inválidos, a pequena guarnição do Forte Ratonneau; lá estava armazenada uma grande provisão de pólvora e lá ele deveria, com seus dois soldados, dedicar-se com afinco a munir foguetes, enrolar girândolas e atar petardos. No momento em que o comandante ia entregar-lhe o inventário e a chave do paiol da pólvora, ele lembrou-se das palavras da mulher e ainda reteve os objetos perguntando:

- Mas o senhor não estaria com o diabo no corpo e disposto a causar alguma desgraça?

- Não se deve falar no diabo que aparece o rabo - respondeu Francœur com certo atrevimento.

Diante disso o comandante ganhou confiança, entregou-lhe a chave, o inventário e a carta para a pequena guarnição então presente no forte ordenando sua retirada. A seguir ele se despediu, e no corredor foi abraçado por Basset; ambos haviam logo se reconhecido e em poucas palavras começaram a contar um ao outro como tinham passado. Entretanto, como Francœur estava habituado a um grande rigor em assuntos militares, desvencilhou-se de Basset e convidou-o para que, no próximo domingo em que não estivesse de serviço, viesse ao Forte Ratonneau como hóspede do comandante, o qual ele tinha a honra de ser ele próprio.

A mudança para o Forte foi uma fonte de contentamento para todos; os inválidos que de lá saíam tinham apreciado até o fastio a bela vista para Marselha; e os que chegavam ficaram maravilhados com a paisagem, com a atilada construção, com o conforto dos aposentos e leitos; além disso, eles compraram dos que partiam algumas cabras, um casal de pombos, uma dúzia de galinhas e as armadilhas a fim de poder espreitar um ou outro animal selvagem nas cercanias, pois soltados ociosos são por natureza caçadores. Uma vez assumido seu posto de comando, Francœur ordenou de pronto a seus dois soldados, Brunet e Tessier, que fossem com ele abrir o paiol da pólvora, conferir o inventário e, em seguida, carregar uma certa quantidade de material ao laboratório para a fabricação de fogos de artifício. O inventário estava correto, e ele imediatamente ocupou um de seus dois soldados com o trabalho dos fogos; com o outro, dirigiu-se a todos os canhões e morteiros a fim de polir os que fossem de bronze e pintar de negro os que eram de ferro. Depois ele ainda municiou um grande número de bombas e granadas, e colocou todas as peças de artilharia na posição que deveriam ocupar para terem em mira o único caminho de acesso ao forte.

- O Forte está inexpugnável! - exclamava ele entusiasmado por vezes a fio. - Quero que o Forte resista mesmo em caso de os ingleses aportarem com cem mil homens e investirem com um assalto! Mas a desordem aqui era grande!

- É assim que são as coisas na maioria dos fortes e quartéis, - disse Tessier - o velho comandante com sua perna postiça não consegue mais subir muito alto e, graças a Deus, até agora os ingleses não tiveram a idéia de aportar.

- Isso precisa mudar, - exclamou Francœur - prefiro queimar a língua a permitir que nossos inimigos reduzam Marselha a cinzas, ou que sejamos forçados a temê-los.

A mulher teve que ajudá-lo a limpar o capim e musgo das muralhas, caiá-las de branco, e arejar as casamatas onde ficavam os víveres. Nos primeiros dias quase não se dormia, tal era o afã de Francœur em distribuir tarefas, e nesse período sua mão hábil realizou o que algum outro talvez só conseguisse em um mês. Enquanto esteve tão ativo seus caprichos o deixaram em paz; ele era arrebatado mas tudo conduzia a objetivos concretos, e Rosalie abençoou o dia em que ele viera para esta região mais alta, onde o diabo parecia não ter poder sobre ele. Além disso, devido à mudança do vento, o tempo tornara-se mais quente e claro, tal como se um novo verão estivesse para ter início; diariamente os navios entravam e saíam do porto, cumprimentavam e eram cumprimentados pelos fortes à beira do mar. Rosalie, que nunca estivera junto ao mar, tinha a impressão de ter sido transportada a um outro mundo, e seu filho, após todo aquele árduo tempo em que estivera preso em carruagens e hospedarias, gozava a plena liberdade no pequeno cercado do jardim do forte, que os antigos moradores, segundo a maneira dos soldados, especialmente dos artilheiros, tinham ornamentado com buxos em linhas entrecruzadas, das mais engenhosas e matematicamente calculadas. No alto do forte tremulava a bandeira com os lírios: o orgulho de Francœur, um sinal de benção para a mulher, cujo sobrenome de solteira era Lilie, e o tema de conversa predileto da criança. Foi assim que o primeiro domingo chegou com as boas vindas de todos , e Francœur ordenou à sua esposa que preparasse algo especial, pois que estava à espera de seu amigo Basset; encomendou particularmente uma boa omelete já que as galinhas do forte botavam ovos com afinco, e entregou na cozinha diversas aves selvagens que Brunet matara com a espingarda. Enquanto se faziam todos esses preparativos, Basset vinha subindo ofegante e ficou encantado com as modificações no forte, além disso indagou em nome do comandante pelos fogos de artifício, ficando surpreso com a grande quantidade de foguetes e pistolas luminosas prontos. A mulher voltou-se então para suas tarefas na cozinha, os dois soldados foram procurar frutas para a refeição, era desejo de todos regalar-se bastante neste dia e ouvir alguém lendo em voz alta o jornal que Basset trouxera consigo. No jardim, Basset sentou-se diante de Francœur e ficou a observá-lo em silêncio, este perguntou-lhe qual a razão disso.

- Eu acho que você está com uma aparência tão saudável como sempre, e tudo o que faz é tão sensato.

- E quem duvida disso? - perguntou Francœur tornando-se agitado. - Isso eu quero saber!

Basset procurou falar de outras coisas, mas havia algo de terrível em Francœur, seus olhos escuros afoguearam-se, sua cabeça ergueu-se, seus lábios projetaram-se para a frente. Já apavorado, o pobre tagarela do Basset falou, com a voz aguda de uma rabeca, sobre boatos que circulavam na casa do comandante, segundo os quais ele estaria sendo atormentado pelo demônio; falou de sua boa vontade em cuidar para que fosse exorcizado por um frei, o padre Philip, o qual já convidara para vir antes do almoço sob o pretexto de rezar uma missa na capelinha para essa tropa que por ora estava distanciada do serviço religioso. Francœur tomou-se de horror ao ouvir a notícia, jurou que haveria de se vingar com sangue daquele que espalhou uma tal mentira a seu respeito, afirmou que nada sabia do demônio e, se acaso nem existisse qualquer diabo, igualmente nada teria a opor, pois nunca tivera a honra de ser-lhe apresentado. Basset asseverou que era totalmente inocente, que ficara sabendo do caso ao ficar à escuta quando o comandante falava sozinho, e além do mais o próprio diabo era a causa de Francœur ter sido afastado do regimento.

- E quem levou essa informação ao comandante? - perguntou Francœur trêmulo.

- Sua esposa, - respondeu o outro - mas com a melhor das intenções; para desculpá-lo se acaso fizer aqui quaisquer tolices desvairadas.

- Estamos separados! - berrou Francœur e deu uma pancada contra a testa - ela denunciou-me, arruinou-me, confabula em segredo com o comandante; ela fez muito por mim e sofreu infinitamente por minha causa, mas a mágoa que me causou também é infinitamente grande, não lhe devo mais nada, estamos separados!

Aos poucos, parecia acalmar-se à medida que ia ficando mais agitado em seu íntimo; ele via novamente o sacerdote vestido de negro da mesma forma como aqueles que foram mordidos por um cão raivoso crêem continuar vendo aquele cão; foi então que o padre Philip chegou ao jardim, e ele rispidamente foi-lhe ao encontro para perguntar o que desejava. O sacerdote imaginou ser necessário lançar mão de suas fórmulas de exorcismo e começou a interpelar o diabo com veemência enquanto suas mãos traçavam linhas em cruz sobre Francœur. Tudo isso revoltou Francœur, que lhe ordenou, na qualidade de comandante do forte, que imediatamente abandonasse o local. Mas o intrépido Philip apenas redobrou suas investidas contra o demônio em Francœur e, quando chegou ao ponto de erguer um bastão, o orgulho militar de Francœur não suportou essa ameaça. Agarrou com força enraivecida o pequeno Philip pelo casaco e arremessou-o por cima da grade que protegia a entrada, e, se o bom homem não tivesse ficado preso pelo seu casaco nas pontas da grade do portão, teria sofrido uma dura queda pela escada de pedra abaixo. Próximo a esta grade estava posta a mesa, o que fez Francœur lembrar-se do almoço. Ele chamou pela comida, e ela foi trazida por Rosalie, que estava um pouco acalorada pelo fogo mas muito alegre, pois não havia percebido o monge do lado de fora da grade, o qual ainda não se recuperara do susto e rezava em silêncio para afastar novos perigos; tampouco ela percebeu o modo como seu marido e Basset fitavam a mesa, o primeiro sombrio, o segundo embaraçado. Ela indagou pelos dois soldados, mas Francœur disse:

- Eles podem comer depois, estou com tanta fome que seria capaz de devorar o mundo inteiro.

Diante disso, ela serviu a sopa, dando a Basset, por cortesia, a porção maior, então foi à cozinha para preparar a omelete.

- O que o comandante achou de minha mulher? - perguntou Francœur.

- Ele gostou muito dela, - respondeu Basset - ele teria desejado igualmente um tratamento tão bom como o seu quando ele foi prisioneiro.

- Que fique com ela! - respondeu ele. - Ela perguntou pelos dois soldados ausentes, mas o que eu desejava ela não perguntou; a você quis conquistar por ser criado do comandante, por isso encheu seu prato até que transbordasse; a você deu o maior copo de vinho, preste atenção e verá que também lhe trará o maior pedaço de omelete! Se isso acontecer, levantarei da cadeira e então quero que a leve embora e me deixe aqui sozinho.

Basset quis responder, mas neste instante entrou a mulher com a omelete. Ela já a havia cortado em três partes, dirigiu-se a Basset e colocou-lhe um pedaço no prato com as palavras:

- Na casa do comandante não pode haver omelete melhor do que essa, espero que o senhor me elogie!

Francœur olhou sombrio para dentro da tigela, o espaço vazio era quase tão grande quanto os outros dois que ainda restavam; ele levantou-se e disse:

- É exatamente como eu disse, estamos separados!

Tendo dito isso ele se dirigiu ao paiol, destrancou a porta de ferro, entrou e trancou-a novamente atrás de si. Perplexa, a mulher seguiu-o com os olhos e deixou cair a tigela:

- Meu Deus, ele está sendo importunado pelo tinhoso; oxalá não cause nenhuma desgraça no paiol.

- Este é o paiol da pólvora? - exclamou Basset. - Ele irá mandar tudo pelos ares, salve-se e a seu filho!

Dizendo isso, largou a correr; também o monge, que não ousara aproximar-se outra vez, correu na mesma direção. Rosalie precipitou-se para dentro da casa em busca da criança, arrancou-a do berço onde dormia, não pensava mais em si mesma; assim como outrora seguira Francœur sem qualquer ponderação, da mesma forma irrefletida agora fugia dele com seu filho, dizendo consigo mesma: "Meu filho, faço isso apenas por você, quanto a mim, seria melhor se morresse com ele; Agar, seu sofrimento não foi tão grande quanto meu, pois eu estou decretando meu próprio exílio!" Ocupada com tais pensamentos, ela acabou descendo pelo caminho errado e parou junto à margem pantanosa do rio. Estava tão esgotada que não conseguia ir adiante e por isso sentou-se em um bote que, apenas levemente encostado à margem, pôde ser facilmente solto, e deixou-se levar pela correnteza. Ela não se atrevia a olhar para trás; quando soava um tiro em terra, imaginava que o forte explodira e que metade de sua vida estava perdida ; assim foi pouco a pouco caindo em um estado entorpecido e febril .

Nesse meio tempo os dois soldados haviam chegado nas imediações do forte carregados com maçãs e uvas, mas a voz possante de Francœur gritou-lhes ao mesmo tempo em que mandava uma bala de espingarda por cima de suas cabeças:

- Para trás!

Em seguida disse pelo megafone:

- Falarei com vocês junto à muralha. Eu sozinho dou as ordens aqui, e também quero viver sozinho aqui enquanto assim aprouver ao diabo!

Eles não sabiam o significado daquilo, mas não havia outra coisa a fazer senão cumprir as ordens do sargento. Eles desceram até a íngreme encosta do forte, a qual costumava ser chamada de muralha, e, mal haviam chegado ali, viram o leito de Rosalie e o berço da criança descendo por uma corda; em seguiram vieram suas camas e apetrechos, e Francœur bradou pelo megafone:

- Tomem o que lhes pertence; quanto à cama, berço e roupas de minha mulher, que fugiu, levem tudo até o comandante, lá vocês a encontrarão; digam-lhe: Satanás envia-lhe isso e também esta velha bandeira para cobrir sua desonra com o comandante!

Enquanto proferia estas palavras, jogou para baixo a grande bandeira francesa que tremulara no alto do forte e prosseguiu:

- Por meio disso declaro guerra ao comandante, digam-lhe para armar-se até o anoitecer, nessa hora abrirei fogo; que ele não poupe munição, pois, com mil diabos, eu também não hei de poupá-lo; que ele avance para mim com todas as suas forças, mesmo assim não conseguirá agarrar-me; ele deu-me a chave para o paiol da pólvora, irei usá-la e se ele planejar prender-me voarei com o paiol para o céu, e do céu para o inferno, isso levantará poeira.

Brunet finalmente ousou falar e gritou para cima:

- Lembre-se de nosso amado rei e de que ele está acima do senhor, certamente a ele o senhor não irá se opor.

Francœur retrucou:

- Em mim está o rei de todos os reis deste mundo, em mim está o demônio e em nome do demônio digo-lhes: calem-se ou irei destroçá-los!

Depois dessa ameaça os dois recolheram suas coisas em silêncio e deixaram o restante para trás; eles sabiam que lá em cima encontravam-se empilhados grandes montes de pedras, que podiam destroçar tudo sob a íngreme muralha de rocha. Quando alcançaram a casa do comandante em Marselha, encontraram-no já em atividade, pois Basset o havia colocado a par de tudo; ele enviou os dois em uma carroça para o forte, a fim de pôr os pertences da mulher à salvo da chuva que ameaçava cair; outro grupo ele incumbiu de sair em busca da mulher e da criança, enquanto ele se reunia em sua casa com os oficiais para avaliar o que se poderia fazer. A preocupação deste estado-maior envolvia principalmente a perda do belo forte caso fosse explodido nos ares; mas pouco depois chegou um enviado da cidade, por onde se espalhara o boato, e argumentou ser inevitável a destruição da parte mais bela da cidade. Todos reconheceram que não seria apropriado agir com violência, pois o propósito não deveria ser a vitória contra um homem sozinho, mas, sim, que uma perda colossal fosse evitada por meio da condescendência; concordaram ainda que o sono acabaria ao final vencendo a fúria de Francœur e então homens resolutos deveriam escalar o forte e amarrá-lo. Esta decisão acabara de ser tomada quando foram introduzidos no aposento os dois soldados que buscaram as camas e utensílios de Rosalie. Eles tinham um recado de Francœur para transmitir: o diabo havia-lhe denunciado que pretendiam aprisioná-lo enquanto dormia, mas ele os prevenia, por afeição a alguns capetas que foram seus camaradas e seriam utilizados nessa empresa, de que ele iria dormir trancado em seu paiol com armas carregadas e, antes que pudessem arrombar a porta, já teria acordado e explodido o paiol com um tiro nos barris de pólvora.

- Ele tem razão, - disse o comandante - não pode agir de outra maneira, temos que vencê-lo pela fome.

- Ele transportou para cima as provisões de inverno que seriam para nós todos, - observou Brunet - teríamos que aguardar pelo menos seis meses. Além disso, ele falou que os navios que passam por ali para abastecer a cidade deveriam pagar-lhe tributos em abundância , caso contrário iria afundá-los, e, como advertência para que ninguém viaje à noite sem sua permissão, fará voar algumas balas por sobre o rio depois do anoitecer.

- De fato, ele está atirando! - exclamou um dos oficiais, e todos correram até uma janela do andar superior. Que espetáculo! Em todos os cantos do forte os canhões abriam suas bocarras afogueadas; as balas zuniam através dos ares, na cidade a multidão se escondia aos gritos, e somente alguns poucos pretendiam dar prova de sua coragem contemplando com ousadia o perigo. Mas eles também foram amplamente recompensados por isso, pois Francœur produzia uma forte iluminação atirando com um obus um feixe de foguetes para as alturas, e com um morteiro um feixe de pistolas luminosas, seguindo-se depois inúmeros outros fogos, que ele lançava com uma espingarda. O comandante exclamou que o efeito era magnífico; ele nunca ousara propulsionar fogos de artifício para cima com armas de arremesso, mas este método tornava a pirotecnia uma arte por assim dizer estratosférica, e, por este feito, Francœur já merecia ser anistiado.

Essa iluminação noturna teve ainda uma conseqüência que certamente não fora tencionada por ninguém: ela salvou a vida de Rosalie e seu filho. Ambos haviam adormecido com o suave deslizar do bote, e Rosalie viu em sonhos sua mãe alumiada em seu íntimo por chamas que a consumiam, e ela perguntou-lhe por que sofria tanto. Nesse momento foi como se uma voz alta lhe clamasse aos ouvidos: "Minha maldição está-me abrasando tal qual a você, e se você não puder anulá-la então estarei irrevogavelmente entregue ao Mal." Ela ia ainda dizer algo mais, porém Rosalie já despertara sobressaltada, ela avistou sobre si o feixe de pistolas luminosas no maior resplendor, e ouviu um navegador gritando bem perto:

- Virem o leme à esquerda, senão afundaremos uma canoa em que está sentada uma mulher com uma criança.

E no mesmo instante já rugia atrás dela, como se fosse a goela escancarada de uma baleia, a proa de uma grande embarcação; esta virou-se então para a esquerda, mas mesmo assim atingiu, ao passar, a parte lateral do bote.

- Socorram o meu filho! - clamou ela, e um remo foi utilizado como gancho para ligar seu bote ao grande barco, que em seguida baixou a âncora.

- Se os fogos de artifício não tivessem sido lançados do forte Ratonneau, - exclamou um dos navegadores - eu não a teria visto, e nós teríamos, sem ter esta má intenção, abalroado e afundado sua canoa. Como é possível que esteja sozinha tão tarde sobre as águas; por que não gritou para nós?

Rosalie rapidamente respondeu as perguntas e rogou que a levassem à casa do comandante. O navegante condoeu-se dela e colocou seu aprendiz à disposição dela como guia.

Ela encontrou a casa do comandante tomada de forte agitação. Rosalie pediu que ele não se esquecesse de que prometera estar disposto a perdoar três faltas de seu marido. Ele negou que na época se tenha mencionado faltas como esta, ouvira queixas acerca de caprichos e brincadeiras, isto aqui porém era um caso sério como o diabo.

- Então o senhor está sendo injusto, - disse a mulher calmamente, pois ela não se sentia mais desamparada - afinal, eu lhe comuniquei o estado do pobre homem e mesmo assim o senhor lhe confiou um posto tão perigoso; o senhor garantiu que manteria segredo e mesmo assim contou tudo a seu criado Basset, que com sua tola esperteza e indiscrição nos lançou em todo este infortúnio; não é o meu pobre marido, mas o senhor quem é o culpado de todo o infortúnio, o senhor terá que prestar contas disso ao rei.

O comandante defendeu-se contra a acusação de que teria contado algo a Basset, ao que este confessou ter ficado à escuta quando ele falava sozinho, e assim toda a culpa lhe foi imputada. O ancião disse que estava disposto a ir ao forte no dia seguinte e expor-se aos tiros para pagar com a vida sua culpa junto ao rei, mas Rosalie pediu-lhe que não se precipitasse e que lembrasse que ela já o salvara do fogo uma vez. Ela recebeu um quarto na casa do comandante e pôs seu filho para dormir enquanto ela própria se entregava à reflexão e rogava a Deus que lhe indicasse como poderia resgatar sua mãe das chamas e o marido da maldição. Porém, ela de joelhos caiu em um profundo sono e na manhã seguinte não se recordava de qualquer sonho, de qualquer inspiração. O comandante, que logo cedo fizera uma tentativa contra o forte, retornou contrariado. Embora não tivesse perdido nenhum de seus homens, Francœur mandou tantas balas e com tal destreza para a direita e para a esquerda e por sobre suas cabeças, que eles deviam sua vida ao fato de ele tê-los poupado. Ele bloqueara a passagem pelo rio dando tiros de aviso, na estrada igualmente o trânsito de veículos estava embargado , em resumo, neste dia todo a tráfego da cidade estava obstruído e a cidade ameaçava que, se o comandante, ao invés de agir com cautela, pretendesse sitiá-lo como se faz em terra inimiga, iria mobilizar os habitantes e dar conta do inválido.

Durante três dias o comandante tolerou que sua ação fosse assim postergada, todas as noites eram glorificadas por fogos de artifício, todas as noites Rosalie lembrava ao comandante sua promessa de indulgência. Na terceira noite ele lhe disse que o assalto estava marcado para o dia seguinte ao meio-dia, a cidade cedera porque todo o tráfego estava impedido e haveria o risco de, com o tempo, acabarem os víveres. Ele disse que iria assaltar a entrada, enquanto um outro grupo tentaria escalar às ocultas o outro lado, na esperança de conseguir tomar o marido dela de surpresa e impedi-lo de correr ao paiol da pólvora; isso iria custar vidas humanas, o fim era imprevisível, mas ele desejava impedir que o ultrajassem dizendo que, devido à sua covardia, um homem enlouquecido tenha podido jactar-se de haver desafiado uma cidade inteira; mesmo o maior dos desastres lhe era preferível a esta suspeita; ele tinha procurado colocar em ordem seus assuntos mundanos e seus assuntos com Deus, Rosalie e seu filho veriam que não foram esquecidos em seu testamento. Rosalie caiu aos seus pés e indagou qual seria o destino de seu marido se fosse capturado durante o assalto. O comandante apartou-se e disse em voz baixa:

- Inevitavelmente a morte, nenhuma corte marcial o pronunciaria insano, há sagacidade, cautela e lucidez demais em todos os seus atos; o diabo não pode ser levado a julgamento, ele terá que penar por ele.

Após uma torrente de lágrimas Rosalie recuperou-se e perguntou se a falta dele seria julgada um ato de loucura e, como tal, agraciada com o perdão, se ela devolvesse o forte ao poder do comandante sem derramamento de sangue, sem perigo.

- Sim, eu juro! - exclamou o comandante. - Mas é em vão, ele a odeia mais do que a qualquer outra pessoa, ontem chegou a gritar a uma de nossas sentinelas perdidas que entregaria o forte se lhe enviássemos a cabeça de sua mulher.

- Eu o conheço, - disse a mulher - quero conjurar o demônio dentro dele, quero trazer-lhe paz, afinal eu morreria com ele, portanto é uma vantagem para mim morrer pela sua mão, à qual estou unida em casamento pelos mais sagrados votos.

O comandante pediu-lhe que pensasse bem, indagou o que tencionava fazer, mas não se opôs nem aos seus rogos nem à esperança que ora o invadia de, por este caminho, evitar a destruição certa.

Padre Philip havia chegado na casa e contou que o insensato Francœur acabara de hastear uma bandeira branca na qual estava pintado o diabo, o comandante porém não quis saber de suas novidades e ordenou-lhe que fosse até Rosalie, que desejava confessar-se. Depois de Rosalie ter feito sua confissão com toda a serenidade de um espírito submisso a Deus, ela pediu ao padre Philip que a acompanhasse até um reparo de pedra seguro, onde nenhuma bala poderia feri-lo e onde iria confiar-lhe seu filho e dinheiro para sua educação, pois no momento ela ainda não tinha ânimo de separar-se da amada criança. Hesitante, ele prometeu fazê-lo após ter inquirido na casa se de fato lá ainda estaria em segurança contra os tiros já que havia perdido totalmente a crença em seu poder de esconjurar o diabo, tendo confessado que aquele que havia exorcizado antes não devia ser o demônio em pessoa, mas apenas um espírito menor.

Com muitas lágrimas, Rosalie ainda vestiu seu filho com uma roupa branca de fitas vermelhas, depois tomou-o nos braços e desceu em silêncio pela escada. Lá embaixo estava o velho comandante, que não conseguiu fazer mais do que apertar-lhe a mão, pois a vergonha fê-lo virar-se a fim de que os presentes não vissem suas lágrimas. Assim sendo, ela saiu à rua, ninguém conhecia seu intento, padre Philip manteve-se um pouco para trás pois teria preferido eximir-se de acompanhá-la, atrás dele seguiu a multidão de pessoas ociosas na rua que perguntavam a ele o que aquilo significava. Muitos praguejaram contra Rosalie por ser esposa de Francœur, mas estas pragas não a incomodaram.

Enquanto isso o comandante conduzia seus homens por caminhos retirados até os sítios a partir dos quais deveria ser iniciado o assalto caso a mulher não conseguisse esconjurar a loucura do marido.

Logo no portão a multidão abandonou Rosalie, pois de tempos em tempos Francœur atirava sobre esta área, aí também o padre Philip queixou-se de fraqueza e de que precisaria sentar-se. Rosalie lamentou isso e indicou-lhe o reparo de rocha onde ainda iria aleitar seu filho mais uma vez e em seguida cobri-lo com o manto, lá ele deveria ser recolhido mais tarde, lá estaria em segurança se ela não pudesse retornar para junto dele. Padre Philip sentou-se atrás dos rochedos rezando, e Rosalie prosseguiu com passos firmes em direção ao reparo de pedra onde alimentou e abençoou seu filho, envolveu-o em seu manto e acalentou-o até que adormecesse. Afastou-se dele então com um suspiro que dissipou as nuvens acima dela de modo que uma clareira azul e a fortificante imagem do sol a iluminaram. No momento em que saiu do reparo de pedra ela ficou visível para aquele homem cruel; uma luz chocou-se contra o portão, uma pressão que quase a fez tombar, uma deslocação do ar acompanhada de um zunido indicaram-lhe que a morte passara perto dela. Entretanto, ela não ficou atemorizada, uma voz interior disse-lhe que nada que sobrevivesse a este dia poderia sucumbir, e seu amor pelo marido, pelo filho, continuava a pulsar em seu coração enquanto ouvia à sua frente o marido em pé na fortaleza, recarregando, e a criança atrás de si, chorando. Estava mais aflita pelos dois do que pelo seu próprio infortúnio, e o que mais oprimia seu coração não era o difícil percurso. E mais um tiro ensurdeceu seus ouvidos e lançou poeira em seu rosto, mas ela fez uma oração e levantou os olhos para o céu. Em seguida penetrou no estreito corredor de rocha que servia de cano prolongado a dois canhões carregados de metralha, o qual, com avareza malévola, se destinavam a comprimir a carga do funesto tiro dirigido aos que se acercavam.

- Que você está olhando, mulher? - berrou Francœur - não olhe para cima, seus anjos não virão, cá está o seu demônio e a sua morte.

- Nem a morte, nem o demônio irão mais me separar de você - disse ela confiante, e continuou ascendendo os amplos degraus.

- Mulher, - bradou ele - você tem mais coragem do que o demônio, mas isso de nada lhe servirá.

Ele acendeu o morrão que quase estava se apagando, o suor luzidio cobria sua testa e as faces, era como se ele tivesse duas naturezas em disputa dentro de si. E Rosalie decidiu evitar qualquer precipitação que obstruísse esta luta, pois começava a ver no tempo um aliado; ela não avançou adiante, ajoelhou-se a três degraus dos canhões, no degrau onde o fogo se cruzava. Ele rasgou o capote e o colete sobre o peito para respirar melhor, passou as mãos pelos cachos de cabelos negros, tesos pelo descuido, e arrancou-os furioso. Nesse momento, as concussões que produzia aplicando pancadas desenfreadas à sua testa abriram a ferida na cabeça, lágrimas e sangue apagaram o estopim aceso, um redemoinho de vento atirou a pólvora para fora do ouvido dos canhões e arrancou a bandeira do paiol.

- O limpa-chaminés está tentando sair, está gritando para fora da chaminé! - bradou ele, e cobriu seus olhos.

Então caiu em si, abriu a porta de grades, cambaleou até sua esposa, ergueu-a, beijou-a e finalmente disse:

- O mineiro encarvoado abriu seu caminho, a luz irradia novamente para dentro de minha cabeça e o ar consegue passagem e o amor irá acender novamente uma lareira que nos impeça de sentir frio. Oh, Deus, que crimes cometi nesses dias. Não devemos festejar, eles apenas me concederão ainda umas poucas horas. Onde está meu filho? Tenho de beijá-lo pois ainda estou em liberdade. O que é morrer? Já não morri uma vez quando você me abandonou? E agora você voltou e sua volta dá-me mais do que sua ida pôde tirar-me: uma infinita percepção de minha existência, cujos instantes são suficientes para mim. Agora eu desejaria viver com você ainda que sua culpa fosse maior do que foi o meu desespero, mas eu conheço a lei de guerra e posso agora, graças a Deus, morrer com juízo como um cristão contrito.

Em seu êxtase e quase sufocada pelas lágrimas, Rosalie mal pôde dizer-lhe que ele fora perdoado e que ela era inocente e seu filho estava ali perto. Às pressas ela enfaixou a ferida e depois puxou-o pelos degraus abaixo até o reparo de pedra onde deixara a criança. Lá encontraram junto à criança o bom padre Philip, que pouco a pouco se esgueirara por detrás das rochas até alcançá-la, e, quando a criança estendeu suas mãos para o pai, algo saiu voando delas. E, enquanto todos os três se mantinham abraçados, padre Philip contou como um casal de pombas esvoaçara do castelo e ficara brincando graciosamente com a criança, deixando-se tocar por ela e, ao mesmo tempo, consolando-a em sua solidão. Quando viu isto, ele ousou aproximar-se do menino.

- No forte, qual anjos bons, elas foram companheiras de folguedos de meu filho, elas fielmente o procuraram, e com certeza hão de voltar outras vezes e não o abandonarão.

E de fato as pombas voavam carinhosamente em torno deles carregando em seus bicos folhas verdes.

- O pecado afastou-se de nós, - disse Francœur - nunca mais irei menoscabar o sossego, o sossego faz-me tanto bem.

Entrementes o comandante havia se aproximado com seus oficiais pois vira o final feliz através de seu binóculo. Francœur entregou-lhe sua espada, ele anunciou o perdão a Francœur já que sua ferida lhe havia subtraído a razão, e ordenou a um cirurgião que examinasse a ferida e lhe fizesse um curativo melhor. Francœur tomou assento e calmamente abandonou-se aos cuidados do médico, ficando apenas a fitar a mulher e o filho. O cirurgião surpreendeu-se por ele não demonstrar dor, ele extraiu-lhe da ferida uma lasca de osso que havia produzido em toda a sua volta uma supuração; parecia que a vigorosa natureza de Francœur havia lutado gradativa e ininterruptamente para sua expulsão até que por fim uma força exterior, sua própria mão guiada pelo desespero, arrancara a crosta externa. Ele assegurou que, sem essa feliz circunstância, uma loucura incurável teria inevitavelmente consumido o infeliz Francœur. A fim de que nenhum esforço lhe causasse dano ele foi colocado em uma carroça, e seu ingresso em Marselha igualou-se, visto tratar-se de um povo que sempre soube apreciar a ousadia mais do que a bondade, a um cortejo triunfal: as mulheres jogavam coroas de louro sobre o veículo, todos acotovelavam-se para conhecer o altivo malfeitor que por três dias dominara tantos milhares de pessoas. Os homens porém entregavam suas coroas de flores a Rosalie e seu filho e louvaram-na como libertadora e juraram que haveriam de recompensar a ela e à criança por ter salvo a cidade da destruição.

Depois de um dia como este é raro que alguém, durante uma única vida, experimente ainda algo que justifique o esforço de narrá-lo, muito embora fosse apenas ao longo desses anos mais serenos que eles, que reencontraram a felicidade e se libertaram da maldição, reconheceram em toda a plenitude a ventura conquistada. O bom e velho comandante adotou Francœur como filho e, ainda que não pudesse transmitir-lhe seu nome, deixou-lhe uma parte de sua fortuna e sua benção. Entretanto, o que comoveu Rosalie ainda mais foi um relato que só anos depois chegou de Praga, no qual um amigo de sua mãe contava que durante um ano inteiro ela fora consumida por dores, arrependendo-se da maldição que lançara sobre sua filha; e, ansiando ardentemente pela redenção de seu corpo e de sua alma, ela viveu desgostosa consigo e com o mundo até o dia em que a lealdade e devoção de Rosalie foram coroadas perante a Deus: neste dia, ela foi apaziguada por um raio vindo de seu interior e adormeceu para sempre, ditosa na confissão de fé do Salvador.

A clemência desfaz a maldição do pecado,

O amor expele o demônio.

 

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