Introdução

Dois romantismos

Quando se menciona a palavra "romantismo", o leitor comum tende a lembrar-se de histórias excessivamente sentimentais, repletas de eventos inverossímeis e marcadas pelo distanciamento da vida "tal como ela de fato é". O romantismo é, enfim - segundo este nosso hipotético leitor comum - sonhador, quimérico, escapista. E para quem quiser defendê-lo não faltarão exemplos de mancebos cheios de garbo e donzelas delicadas como cristal; virgens ruborizadas ou a ponto de desfalecer pela simples menção dos nomes dos eleitos de seus corações; jovens contemplando a lua e entregues a sofrimentos infindos; apaixonados doentes de amor; e mortes trágicas, muito trágicas. Afinal, quem terá esquecido o suicídio de Werther; os infortúnios passionais de Amor de perdição; as desventuras de Eurico; a doce abnegação de Iracema; a galhardia de heróis do porte de Ivanhoé; a platônica devoção de Peri?

Mas aqui cabe perguntar: será apenas isto? Terão todos os heróis românticos "morrido de amor" e se desmanchado em lágrimas e suspiros? Terá realmente se exaurido nisso o poderoso gênio criador dos românticos?

Ora, não devemos esquecer que o romantismo foi um movimento literário extremamente vasto e complexo, que defendeu, sim, a liberação dos sentimentos, das aspirações pessoais, das tendências específicas de cada subjetividade contra a imposição de desígnios supra-individuais, mas que, muito além disso, desenvolveu uma enorme gama de tendências que se ramificaram nas mais variadas direções do espírito humano. O romantismo, enfim, foi um movimento crítico, rebelde, inquisitivo, revelador. Houve as lágrimas, sem dúvida, mas também o grito por justiça; houve o gesto retrógrado mas também a diligência inovadora; houve o espírito voltado para o passado mas também o olhar em busca do futuro.

Quaisquer que hajam sido os seus motivos e característicos, sejam quais forem as definições que comporte (e inúmeras lhe têm sido dadas), o Romantismo foi sobretudo um movimento de liberdade espiritual, primeiro, se lhe remontarmos às últimas origens, filosófica, literária e artística depois, e ainda social e política. Em arte e literatura seu objetivo foi fazer algo diferente do passado e do existente, e até contra ambos. Excedeu o seu propósito, e em todos os ramos de atividade mental, até nas ciências, foi uma reação contra o espírito clássico, que, embora desnaturado, ainda dominava em todos. (Veríssimo, 1954, p. 140)

A grande contribuição do romantismo não se restringe tão-somente ao campo das letras, mas logra alcançar todo o pensamento humano (Nunes, 1985, p. 52), pois significou a rebeldia contra a autoridade do passado, contra o convencionalismo fossilizado, contra a manutenção incontestada das tradições. Não obstante tenha abarcado também tendências conservadoras, o romantismo como um todo - que, devemos lembrar, elevou-se aos céus da Europa propulsionado pelos ventos da Revolução Francesa - representou a liberdade, o espírito de renovação, a busca de caminhos inexplorados.

Como tal, o romantismo não foi dogmático nem restritivo, não especificou nem determinou diretrizes. Como resultado, não houve apenas um romantismo, mas inúmeros. O que identifica e distingue o romantismo não é um ideário fixo e imutável, mas simplesmente o desejo de realizar algo novo, diferente, original - algo diverso de tudo o que já existisse. Neste sentido, não apenas cada indivíduo procurou em si mesmo o gérmen daquilo que poderia criar, como também cada nação que acolheu o espírito romântico seguiu um caminho próprio.

Daí decorre a multiplicidade do romantismo como um todo, capaz de abrigar a especificidade de cada um dos romantismos nacionais que pipocaram pelo mundo ocidental. Para examinar justamente essa amplitude e essa particularidade desenvolvidas pelo movimento, vamos tratar aqui de sua manifestação em dois países bastante distantes um do outro: a Alemanha - que, juntamente com a Inglaterra, foi um dos focos iniciais do romantismo - e o Brasil, onde só chegou várias décadas mais tarde.

Em meio ao imenso arsenal literário produzido pelos poetas, escritores e dramaturgos românticos, optamos por ater-nos exclusivamente à prosa romântica, pois que, no Brasil, a poesia já costuma ser a eleita privilegiada da maioria dos trabalhos sobre esse movimento, restando à prosa o mero papel de coadjuvante. E nada mais injusto do que relegar a prosa a segundo plano, já que ela ocupou um lugar de grande importância nos dois romantismos que iremos analisar: na Alemanha, o romance e o conto foram os gêneros de primeira instância durante esse período; no Brasil, a escola romântica prova ser o verdadeiro berço dessas duas formas literárias. A proeminência da prosa é, por exemplo, atestada por Heron de Alencar (1986, p. 239), cuja opinião é a de que a poesia romântica mais relevante só apareceu no Brasil depois de o romance já ter estreado entre nós.

A despeito do papel tão fundamental exercido pela prosa no âmbito dessa época literária, há de se considerar que os poetas brasileiros ditos ultra-românticos marcaram de tal forma a nossa história literária que o leitor comum tende a ver esta manifestação específica de romantismo - ancorada no sentimentalismo e egocentrismo exacerbados - como o romantismo por excelência (Candido, 1981, p. 149). Uma vez que a geração ultra-romântica se expressou notadamente através da poesia lírica, esta forma acabou ganhando maior atenção dos teóricos. Em conseqüência, é à poesia romântica que tem sido conferidos no Brasil todos os louros, acreditando-se que "é na poesia que se sublinham as notas marcantes do Romantismo" (Candido & Castello, 1980, p. 209).

Enveredando por esta direção, Carpeaux (1987, p. 1199) chega mesmo a se referir à prosa - aliás, mais especificamente ao romance - como "o gênero mais anti-romântico de todos". A despeito da opinião deste conceituado teórico, temos diante de nós exemplos - em número e qualidade que acreditamos serem suficientes - para deixar clara a relevância desse gênero no contexto da literatura romântica: na Alemanha, os romances de Novalis e E. T. A. Hoffmann; na Inglaterra, de Walter Scott; na França, de Victor Hugo e Honoré de Balzac; em Portugal, de Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco; no Brasil, de José de Alencar. Esses nomes demonstram que vários dos autores de maior relevância e influência escreveram romances, os quais se tornaram verdadeiros marcos de suas respectivas literaturas nacionais.

Em vista disso, é lamentável que no Brasil se conheça tão pouco da ficção em prosa dos românticos alemães, restringindo-se praticamente só a Hoffmann, lembrado em geral apenas por uma fração relativamente pequena de sua obra: os "contos fantásticos". Fora Hoffmann, ainda chegaram até o público brasileiro os contos de Grimm, enquadrados na literatura infantil. Quanto à ficção em prosa dos românticos brasileiros, ela decerto tem sido objeto de diversas pesquisas; essas análises, no entanto, tendem a se concentrar nas poéticas individuais dos escritores, subtraindo-se à tarefa de investigar o conjunto.

Aqui, ao contrário, a atenção está voltada ao universo da prosa de ficção como um todo, buscando-se sublinhar a multiplicidade de seu espectro e destacando-se os traços que mais caracterizam e individualizam os romantismos alemão e brasileiro. Ao fazer essa distinção não estamos procurando estabelecer uma escala de valores para definir qual dos dois romantismos é "melhor" do que o outro. Esperamos, sim, que o levantamento das peculiaridades de cada romantismo conduza a uma maior apreciação e estima daquilo que cada um tem de característico.

Tampouco pretendemos rastrear o caminho que o romantismo teria feito de um país a outro. Menos ainda defendemos a idéia de que, no caso dos romantismos alemão e brasileiro, um teria emprestado algo ao outro. Ao contrário: quando falamos em "dois romantismos" estamos nos referindo à maneira específica e peculiar com que esses dois países, cada qual a seu modo, desenvolveram uma literatura romântica. Nosso propósito é, portanto, mostrar que o romantismo - a despeito de certos ideais comuns - é um movimento que pôde adaptar-se às condições e circunstâncias particulares dos diversos países em que se manifestou, criando formas particulares e específicas. Procuraremos, assim, mostrar a maleabilidade do romantismo que, longe de ter um ideário fixo e predeterminado (que teria simplesmente sido "exportado" de um país a outro), permitiu que germinassem e se expandissem as características individuais e nacionais específicas.

Aliás, tal maleabilidade é uma marca indelével que, se, de um lado, é a fonte borbulhante de que emana a riqueza multifacetada das produções literárias do romantismo, de outro, é um poço sem fundo em que se perdem todos os esforços dos estudiosos em demarcar as suas fronteiras. Eis pois que, não obstante toda a discussão de que há décadas o romantismo tem sido objeto, o fantasma da indefinição e da imprecisão continua rondando o movimento:

Some degree of vagueness attaches to all terminology in literary history, but nowhere is the problem more acute than in the case of Romanticism. The fact that the term has survived in spite of all the controversy which has raged around it [...] is proof enough that it is needed, but the confusion which exists as to its meanings makes it difficult to use. Some of that confusion is inherent in the phenomenon itself; some results from insufficient awareness of the variety of perspectives from which it can be, and is used. (Menhennet, 1981, p. 11)

Certo grau de indeterminação está ligado a toda terminologia da história literária, mas em ponto algum o problema é tão agudo como no caso do romantismo. O fato de que o termo sobreviveu a despeito de toda controvérsia que fervilhou ao seu redor [...] é prova suficiente de que ele é necessário, mas a confusão quanto ao seu significado torna-o difícil de ser empregado. Uma parte dessa confusão é inerente ao próprio fenômeno; outra parte resulta de não se ter plena consciência acerca da variedade de perspectivas a partir das quais ele pode ser, e é, usado.

Em outras palavras, os habituais contornos vagos do termo "romantismo" devem-se em parte à elástica vocação dos estudos literários, que podem abordar o fenômeno artístico partindo de pontos dos mais diversos, mas também à própria essência deste movimento que "por definição" é volátil. No entanto, algumas tendências e idiossincrasias foram mais disseminadas ou tiveram maior penetração junto ao público, tanto leigo como especializado, de modo que, conforme já apontamos anteriormente, determinados traços - na verdade peculiares a um dado momento romântico - começaram a ser vistos como determinantes de toda a constelação romântica. Daí resultou em grande parte um conceito de romantismo um tanto simplificador, que despreza a sua variedade intrínseca. Em conseqüência, resta para muitos apenas a imagem de um romantismo exaustivamente lacrimoso e sentimental, além de adverso à realidade e à Razão.

A premissa de que partimos aqui é, ao contrário, a de que não há um romantismo por excelência mas variáveis possibilidades de romantismo. Assim, não apenas este movimento se mostra multifacetado quando observamos as diferentes tendências que é inclinado a desenvolver dentro de um mesmo país - dando origem a agudas distinções de uma geração a outra -, como esta multiplicidade ainda é radicalmente dilatada quando ampliamos nosso horizonte de pesquisa e passamos a vislumbrar o romantismo tal como se concretizou em lugares e épocas diferentes.

Nosso propósito aqui não será o de responder ao problema da indefinição do romantismo, mas mostrar que ele não pode ser respondido uma vez que uma conceituação clara e indubitável de romantismo não é possível. E isto porque uma leitura do romantismo, da maneira como ele se manifestou na Alemanha (um dos locais da gênese do movimento) e em nosso próprio Brasil, mostra que, apesar das semelhanças, ele "assume a cara" do país que o aloja. Mais do que apontar para os pontos em comum, o presente trabalho levanta as características diferenciadas e, portanto, individualizadas de cada romantismo.

Uma vez que se pretende aqui um enfoque de literatura comparada, seria útil abordarmos algumas questões levantadas por esse ramo de estudos e que podem fornecer alguns subsídios úteis à nossa pesquisa.

 

Bibliografia

 

ALENCAR, Heron de. José de Alencar e a ficção romântica. In: COUTINHO, Afrânio (Dir.). A literatura no Brasil. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: J. Olympio / Niterói: EDUFF, 1986. v. 3. p. 231-321.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira; Momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. v. 2 (1836-1880).

CANDIDO, Antonio, CASTELLO, J. Aderaldo. Romantismo. In: ___. Presença da literatura brasileira. 10. ed. São Paulo / Rio de Janeiro: Difel, 1980. v. 1: "Das origens ao romantismo". p. 203-215.

CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. 3. ed. Rio de Janeiro: Alhambra, 1987. v. 5: "O romantismo".

MENHENNET, Alan. The Romantic Movement. London: Croom Helm, 1981.

NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, Jacob (Ed.). O romantismo. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1985. (Stylus, 3). p. 51-74.

VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira; De Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1954. (Documentos Brasileiros, 74).

 

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