O LOIRO ECKBERT
De um período de extrema exaltação do poder criativo do indivíduo data o texto Der blonde Eckbert (1797). Esta criação de Ludwig Tieck (1773-1853) tem caráter verdadeiramente programático, uma vez que integra a antologia Volksmärchen, a partir da qual se costuma datar o início do romantismo na Alemanha. Nesta obra os aspectos subjetivos têm total predominância dentro do texto - o que se encontra em consonância com uma particularidade básica do grupo de Jena: a noção de que o Eu é instância criadora da realidade na medida em que é dele que depende toda a apreensão do mundo (Idealismo).
Dessa forma, tempo, espaço, personagens, enredo, tudo enfim, só tem sua existência sancionada a partir da percepção subjetiva do indivíduo. Em outras palavras, o tempo é "medido" segundo as oscilações de consciência; o espaço apenas reflete o estado emocional de quem nele se movimenta, tornando-se ora lúgubre e árido (em momentos de tensão ou angústia) ora belo e risonho (acompanhando as sensações de bem-estar e segurança); os personagens têm sua identidade diluída e até mesclada entre si na medida em que o protagonista se torna cambiante em sua própria individualidade e lucidez.
Ao leitor não é fornecido nenhum arrimo ou ponto de apoio. Não há um narrador onisciente e onipresente que lhe desvende e esclareça esse verdadeiro redemoinho em que o texto se vai transformando. Assim, além da analogia entre os protagonistas que já está sinalizada em seus nomes - Eckbert e Berta -, outros personagens vão se revelando idênticos uns aos outros. A cada página o turbilhão é maior e, por fim, o leitor não consegue mais ter certeza alguma quanto à identidade dos personagens. Como resultado, também não reconhece os agentes da ação, ou seja, ele não sabe quem fez o quê. Não há possibilidade de mecanicamente separar os bons dos maus, os inocentes dos culpados.
O loiro Eckbert inspira-se, sem dúvida, no conto de fadas, do qual aproveita vários motivos e elementos: a menina pobre que foge de casa para salvar-se da crueldade dos pais; a bruxa velha e feia que tem sua casinha em lugar distante e ermo; o pássaro fabuloso que fala e bota ovos mágicos; e o casamento da menina pobre com o príncipe de seus sonhos.
A semelhança, no entanto, pára por aqui, pois o texto de Tieck apresenta uma série de transgressões em relação aos elementos típicos do conto de fadas: o pássaro encantado não está lá para trazer a felicidade, mas para cantar estrofes que prenunciam o futuro desastroso; a menina que escapa dos maus tratos em casa acaba encontrando um verdadeiro paraíso, belo e seguro, mas depois de algum tempo, ela se aborrece e deseja voltar ao seu lugar de origem; o ato culposo é inexoravelmente castigado no final, mas a punição não recai sobre a bruxa (como em Branca de Neve) e, sim sobre um dos protagonistas - aliás, recai justamente sobre aquele que não incorreu na falta que se está castigando! Não há possibilidade de salvação porque a culpa é um estado de espírito que pode ser permutado entre sujeitos diferentes e não depende dos atos praticados.
Assim, Tieck lança mão de elementos temáticos da narrativa popular, mas utiliza-os para criar um texto inusitado e perturbador em que a própria tradição (conto de fadas) serve de elemento de ruptura. O resultado é uma criação intrinsecamente original e complexa em que as categorias usuais de tempo, espaço, individualidade, enredo são transfiguradas, forçando o leitor a traçar novos parâmetros de abordagem. Hoje em dia pode-se dizer que O loiro Eckbert explora de forma pioneira os mistérios do inconsciente, da dupla personalidade, da oscilação da lucidez.