FRIEDRICH DE LA MOTTE FOUQUÉ

 

Ondina

 

Tradução de Karin Volobuef

 

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CAPÍTULO DOIS

Como Ondina chegou à casa do pescador.

 

Huldbrand e o pescador saltaram de seus assentos para seguir a encolerizada donzela. Mas antes que alcançassem a porta da cabana, Ondina já havia desaparecido há muito, lá fora, na nebulosa escuridão, e seus pés ágeis não produziam qualquer ruído que denunciasse para onde ela poderia ter dirigido seus passos. Huldbrand lançou um olhar de interrogação para seu hospedeiro. Tinha quase a impressão de que toda aquela adorável aparição, que submergira outra vez na noite com tanta rapidez, não fora nada além do que o prolongamento das singulares visões que anteriormente o haviam perseguido na floresta. Mas o velho pescador murmurou à meia voz:

- Não é a primeira vez que ela age assim conosco. Agora, pela noite inteira teremos o coração assaltado pelo temor, e os olhos abandonados pelo sono, pois não há como saber se ela ainda não acabará sofrendo algum dano ficando lá fora assim sozinha até o despontar da aurora.

- Vamos segui-la então, meu bom ancião, por Deus! - bradou Huldbrand alarmado.

O velho respondeu:

- De que serviria isso? Seria um pecado se eu o deixasse seguir assim sozinho pela noite e pelo ermo atrás dessa menina imprudente. E minhas velhas pernas não alcançam aquela cabeça-de-vento, ainda que soubéssemos para onde ela correu.

- Então, pelo menos temos que chamá-la e pedir-lhe que retorne. - disse Huldbrand, começando a chamar de modo muito comovente:

- Ondina! Oh, Ondina! Por favor, volte!

O velho pescador, enquanto abanava a cabeça de um lado para o outro, assegurou que no final toda aquela gritaria não ajudaria em nada, e que o cavaleiro ainda não sabia quão obstinada a mocinha era. Mesmo assim, não pôde abster-se de também chamar diversas vezes rumo às trevas da noite:

- Ondina! Oh, querida Ondina! Eu lhe peço, volte só dessa vez!

Apesar disso, aconteceu como o pescador dissera. Nada de Ondina aparecer ou de se fazer ouvir, e, como o ancião de forma alguma queria admitir que Huldbrand fosse ao encalço da fugitiva, os dois viram-se por fim forçados a entrar de volta na cabana. Ali encontraram as chamas do fogão já quase extintas, e a dona da casa - que nem de longe se preocupava tanto como seu esposo com a fuga e o perigo de Ondina - já se recolhera. O ancião reacendeu os carvões, deitou madeira seca por cima e, enquanto o fogo tornava a se avivar, buscou uma bilha com vinho que depositou entre si e seu hóspede.

- O senhor, cavaleiro, também teme pela tola menina - disse - e será melhor passarmos uma parte da noite a conversar e beber do que rolando para lá e para cá nas esteiras de junco esperando inutilmente pelo sono, não é verdade?

Huldbrand aquiesceu satisfeito. O pescador convidou-o a sentar-se no lugar de honra que a dona da casa deixara vazio ao ir deitar-se, e os dois beberam e conversaram como compete a dois bons e íntimos amigos. Cumpre dizer que todas as vezes em que percebiam o menor movimento diante das janelas, ou mesmo quando nada se movia, um dos dois levantava o olhar de tempos em tempos dizendo: "Ela está vindo!" Ficavam então silenciosos por alguns momentos mas depois, como nada aparecesse, retomavam o fio de sua conversa, meneando a cabeça e suspirando.

Não obstante, como ambos não conseguiam pensar em quase mais nada além de Ondina, não restou nada melhor ao cavaleiro do que ouvir de que modo Ondina veio a ter com o velho pescador, e ao velho pescador contar justamente essa história. Assim sendo, ele deu início da seguinte maneira:

- Certa vez - já devem ter-se passado uns quinze anos desde então - eu atravessei a funesta mata com minha mercadoria para a cidade. Minha mulher ficara em casa como de costume mas, nessa ocasião, havia ainda um motivo muito especial para isso, pois Deus tinha-nos presenteado - quando já contávamos então com uma idade bastante avançada - com uma linda criancinha. Era uma menininha, e nós já estávamos pensando se, para o bem da recém-chegada, não deveríamos abandonar nosso belo promontório para, no porvir, criar melhor a nossa querida dádiva divina em local mais povoado. Entre pessoas pobres, essas coisas certamente não são como o senhor, cavaleiro, deve estar imaginando, mas... Deus do céu! Cada um deve fazer o melhor que pode. Pois bem, pelo caminho eu ia pensando muito no assunto. Eu amava esse promontório do fundo de meu coração, e sentia um grande sobressalto quando, em meio ao barulho e às contendas da cidade, pensava: "Logo também você fixará sua residência em um lugar desses ou, pelo menos, em algum não muito mais tranqüilo!" Mas com isso eu não estava protestando contra o nosso amado Senhor, pelo contrário, no íntimo agradecia-Lhe pela recém-nascida. Também estaria mentindo se dissesse que, no caminho de ida ou volta através da floresta, tivesse me deparado com qualquer coisa mais inquietante do que de costume, sendo que nunca observei de fato nada de sinistro lá. Nosso Senhor sempre esteve comigo naquelas assombrosas penumbras.

Ao dizer assim, retirou o pequeno gorro da cabeça calva e permaneceu algum tempo orando em silêncio. Depois, recolocou o gorro e prosseguiu:

- Deste lado da mata, oh, foi deste lado que a calamidade veio ao meu encontro. Minha esposa aproximou-se com olhos que marejavam como dois regatos; ela vestira roupas de luto. "Oh, meu Deus", gemi, "onde está nossa amada criança? Diga!" - "Junto Àquele que você está invocando, querido esposo", respondeu, e fomos juntos então à cabana, chorando mansamente. Procurei pelo pequeno cadáver, e só então fiquei sabendo como tudo ocorrera. Minha esposa estivera sentada com a criança à margem do lago e, enquanto brincava com ela muito despreocupada e feliz, a pequena de repente inclinou-se para a frente, como se visse algo maravilhosamente belo na água. Minha esposa ainda viu a menina - o adorado anjo - rir e estirar as mãozinhas, mas, nesse exato instante, levada pelo movimento brusco, ela despencou de seus braços para dentro do úmido espelho. Procurei longamente pela pequena morta, mas tudo em vão: não pude encontrar nem a menor pista dela.

"Despojados de nossa filha, estávamos, pois, nessa mesma noite sentados juntos na cabana, em silêncio. Nenhum de nós tinha vontade falar, mesmo que as lágrimas o tivessem permitido. Estávamos simplesmente observando as chamas do fogão. Em certo momento, fez-se ouvir um ruído lá fora, junto à porta; ela abriu-se de um golpe e uma linda menininha de uns três ou quatro anos, ricamente vestida, estava parada na soleira, sorrindo para nós. Ficamos totalmente mudos de assombro e eu não soube, de início, se se tratava simplesmente de um pequeno ser humano ou, de fato, de uma aparição fantasmagórica. Mas aí notei água gotejando dos cabelos dourados e dos ricos trajes e me dei conta de que a bela criancinha estivera mergulhada na água e necessitava de ajuda. "Mulher", disse, "ninguém pôde salvar nossa amada filha, façamos pelo menos para os outros aquilo que nos faria ditosos na face da Terra se alguém o fizesse por nós." Tiramos as vestes da pequena, levamo-la para a cama e demos-lhe bebidas quentes. Enquanto isso, ela não disse palavra alguma, limitando-se a nos fitar, sempre sorrindo, com seus olhos celestiais, azuis como o lago.

"Na manhã seguinte pudemos verificar que ela com certeza não sofrera maiores danos e eu lhe perguntei, então, sobre seus pais e sobre como chegara até aqui. O resultado, contudo, foi uma história confusa e estapafúrdia. Ela deve ter vindo de muito longe, uma vez que, não apenas foi-me impossível nesses quinze anos descobrir qualquer coisa sobre a sua origem, como também ela contava, e de vez em quando ainda conta, coisas tão extravagantes que nós não sabemos se, no final de contas, ela não terá descido da Lua. Ela fala de castelos dourados, telhados de cristal e Deus sabe o que mais. O que ela narrou de mais inteligível foi que estava passeando no grande lago com a mãe, caiu da barca para dentro da água e recuperou seus sentidos apenas aqui debaixo das árvores, sentindo-se bastante confortável junto à acolhedora margem.

"Uma grande dúvida e preocupação ainda oprimia nossos corações. É certo que sem tardar já decidíramos que iríamos conservar e educar a menina encontrada, em lugar da adorada filha que se afogara - mas quem poderia saber se a criança era batizada ou não? Ela própria não sabia informar a respeito. Diversas vezes ela nos asseverou saber muito bem que era um ser criado para louvor e alegria de Deus e estava disposta a se submeter a tudo aquilo que concorresse para o louvor e alegria de Deus. Minha mulher e eu achávamos que se ela não era batizada, não haveria tempo a perder; mas se ela já o fosse, em se tratando de algo benévolo, o excesso não poderia ser tão prejudicial como a falta. Em conseqüência, começamos a pensar em um bom nome para a criança, à qual, ademais, ainda não sabíamos direito como nos dirigir quando queríamos chamá-la. Por fim, concluímos que Dorothea seria o mais adequado para ela, já que me haviam dito certa vez que esse nome significa ‘dádiva de Deus’ e, afinal, ela nos fora enviada por Deus como uma dádiva para consolar-nos em nosso desalento. Ela, porém, não quis saber disso, declarando que seus pais lhe haviam dado o nome de Ondina, e Ondina ela queria continuar sendo chamada. Esse, porém, pareceu-me um nome pagão que não consta de nenhum calendário e, por isso, fui buscar conselho junto a um sacerdote na cidade. Ele também desaprovou o nome Ondina e, aquiescendo às minhas numerosas súplicas, acompanhou-me através da misteriosa floresta para a realização do batismo aqui em minha cabana. A pequena postou-se diante de nós tão lindamente enfeitada e graciosa que o coração do sacerdote logo se rendeu a ela. A menina soube agradá-lo com tanta cortesia e, vez por outra, afrontá-lo com tanta graça que ele por fim não conseguia mais se recordar de nenhuma das objeções que tinha preparadas contra o nome Ondina. Assim sendo, ela foi batizada Ondina e, a despeito de seus modos selvagens e buliçosos de costume, manteve-se durante a cerimônia religiosa excepcionalmente doce e bem comportada. Pois nisto minha mulher tem toda a razão: nós já passamos por maus bocados com ela. Se eu fosse contar-lhe..."

O cavaleiro interrompeu o pescador para chamar sua atenção para um ruído, semelhante a torrentes de água rugindo furiosamente, que já ouvira antes entremeando-se à fala do ancião e que agora se precipitava com ímpeto crescente diante das janelas da cabana. Ambos lançaram-se para a porta. Nesse momento, à luz da Lua que já nascera, viram lá fora que o regato que corria da floresta arrojara-se ferozmente sobre suas margens e arrastava consigo pedras e troncos em um torvelinho arrebatador. Como que despertada pelo estrondo, a borrasca irrompeu das nuvens noturnas, atiçando-as defronte à Lua com a velocidade de uma seta, o lago bramia sob as asas do vento que se agitavam, as árvores do promontório gemiam da raiz até o cimo e arqueavam-se como que estonteadas sobre as águas caudalosas.

- Ondina! Pelo amor de Deus, Ondina! - gritaram os dois homens espavoridos.

Nenhuma resposta veio ao seu encontro e, sem atentar mais para qualquer pensamento de cautela, correram ambos para fora da cabana, procurando e chamando, um nessa, outro naquela direção.

 

Capítulo Três

 

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