Prefácio

Karin Volobuef

 

O Pequeno Zacarias chamado Cinábrio é um conto de fadas, uma história de amor narrada com bom humor e ironia. Mas é também uma refinada sátira social e política da Prússia no início do século XIX, da qual não escapam governantes e burocratas, intelectuais e camponeses, estudantes e poetas. Trata-se de um texto ágil e envolvente, que diverte ao mesmo tempo em que leva o leitor a pensar e refletir sobre questões que surpreendentemente continuam hoje muito atuais.

Embora muito se tenha dito acerca do "escapismo" dos românticos, suas obras constituem na verdade uma resposta direta a questões de seu momento histórico, o que é especialmente visível no caso de Hoffmann. Isto se percebe inclusive em seus contos de fadas, nos quais o elemento mágico não serve simplesmente para imergir o leitor em uma atmosfera de sonho, mas sim para levá-lo a ver a própria realidade sob um novo prisma.

O Pequeno Zacarias está entre as principais obras de Hoffmann e é um exemplo representativo de sua poética naquilo que ela reúne de mais importante. Apesar disso, este conto - como é em geral o caso de seus contos de fadas - é praticamente desconhecido pelo público leitor brasileiro, que em sua maioria conhece Hoffmann apenas como o "autor de contos de horror". Assim, algumas das suas obras mais significativas não chegam a ser conhecidas, o que faz com que a imagem de Hoffmann permaneça entre nós restrita e unilateral. A presente tradução visa contribuir para mudar esse estado de coisas e dar uma amostra da amplitude e diversidade do gênio desse autor.

v v v

E. T. A. Hoffmann (1776-1822) é o escritor romântico alemão de maior repercussão internacional. Embora tivesse tido um extenso público na Alemanha enquanto ainda vivo, atravessou depois uma longa fase de esquecimento em seu próprio país, enquanto seu renome crescia no exterior. Apesar de sua importância só ter sido mais uma vez reconhecida em solo alemão no começo do século XX, ela já fora apontada por autores como C. Baudelaire, E. A. Poe, N. Gogol, G. A. Bécquer, etc. E, pela influência que vem continuamente exercendo sobre autores e mesmo movimentos literários, a obra de Hoffmann assume cada vez mais um significado inquestionável.

Nascido em Königsberg (atual Kalinigrado), Hoffmann curvou-se à tradição familiar e estudou direito, dedicando-se à carreira jurídica entre 1795 e 1806, ano em que perdeu seu cargo em decorrência da invasão das tropas de Napoleão. Teve início então um período de sérias dificuldades financeiras (que durou até o seu retorno ao serviço público em 1814), que lhe ofereceu, em contrapartida, a chance de dedicar-se ao seu desenvolvimento artístico. Nessa época, ele se aprimorou como músico, descobriu seu talento literário, foi diretor do teatro de Bamberg, compositor (inclusive de uma ópera, Undine, concluída em 1816), desenhista, pintor, maestro e crítico musical, sendo mesmo considerado o inventor da crítica musical moderna.

Sua obra literária reflete esta versatilidade, reunindo textos em prosa sobre temáticas muito variadas. Assim, por exemplo, destacam-se diversas obras que giram em torno da música, dentre as quais podemos citar O cavaleiro Gluck, Don Juan, Notícias acerca das mais recentes aventuras do Cachorro Berganza, entre outras. Várias dessas obras de inspiração musical contam com a participação de um personagem que se tornou famoso no ambiente cultural da época: o maestro Johannes Kreisler (inspirador das famosas Kreislerianas de Schumann). Nele, Hoffmann criou uma figura exemplar, com todas as características do músico temperamental, dedicado exclusivamente à sua arte e alheio aos aspectos práticos da vida - o que contribuiu para a imagem do artista romântico exacerbado, mito que Paganini personificou com perfeição.

Uma outra faceta de sua obra é constituída pelos seus "contos de horror", povoados de motivos como o autômato, o sósia ("Doppelgänger"), a loucura ou o pesadelo. Muitas vezes, como em O morgado, o sobrenatural insere-se em ambiente tipicamente gótico: o castelo sombrio e isolado, palco de um ignóbil crime. Em outros casos, o elemento horripilante e sobre-humano ganha uma outra dimensão: a das neuroses e traumas psicológicos, a exemplo do Homem da areia, muito famoso devido à análise que Freud apresentou em seu Das Unheimliche.

Entre as obras de cunho mais realista sobressai, entre outras, A senhorita von Scuderi - uma elaborada narrativa que contém o gérmen do conto policial, gênero cuja criação propriamente dita é atribuída a E. A. Poe. Muito embora neste conto ainda esteja ausente a indispensável figura do detetive, Hoffmann antecipa diversos elementos e situações que mais tarde integrarão o repertório clássico da história policial: diversos suspeitos são ouvidos repetidamente a fim de se encontrar pistas, emprega-se tanto a análise objetiva dos acontecimentos como a intuição na tentativa de solucionar o crime, etc.

Marcadamente inovador, - e tido como uma de suas obras-primas - é o seu romance O gato Murr, uma paródia do "romance de formação" (gênero pautado no Wilhelm Meister de Goethe). Nele, o próprio gato relata suas experiências em uma hilariante narrativa que é de tempos em tempos interrompida por trechos desordenados da biografia do maestro Kreisler, que se teriam "acidentalmente" misturado ao manuscrito do felino. A técnica de tramas paralelas, a aparente desconexão entre as duas histórias, a presença de lacunas, etc. tornaram esse romance um grande embaraço para o seus contemporâneos. Contudo, ao romper com as categorias tradicionais de tempo e espaço e adotando a diversidade de planos narrativos, Hoffmann criou uma obra que se furta aos critérios literários clássicos e se antecipa aos parâmetros introduzidos pelos romances de Th. Mann, R. Musil e H. Broch.

Ocupando um lugar proeminente no conjunto das obras de Hoffmann estão alguns de seus contos de fadas: O pote de ouro, O pequeno Zacarias, A princesa Brambilla e o Mestre Pulga. Traço peculiar desses contos de fadas é o entrelaçamento de elementos mágicos ou encantados com aspectos extraídos da vida cotidiana. Assim, apesar das fadas e duendes, feitiços e animais falantes, vemos os problemas mais banais do dia-a-dia representados com acuidade e riqueza de detalhes. Por meio da conjunção desses elementos tão díspares o autor consegue levar o seu leitor a encarar a realidade de modo mais crítico. Para esse fim, os contos de fadas de Hoffmann costumam estar ambientados em cidades e locais públicos bem conhecidos, e a ação se passa em data específica (e, na falta desta, sempre são fornecidos indícios claros que permitem inferir a época dos acontecimentos). Os personagens são retratados com profissão determinada, linguagem característica de seu meio, costumes e valores correspondentes à sua posição social.

O quanto Hoffmann se ateve à realidade extra-ficcional pode ser atestado pela censura sofrida pelo seu último conto de fadas, O mestre Pulga, cujo processo remonta à nomeação de Hoffmann (em 1819) para integrar uma comissão especial de investigação e julgamento de supostos complôs de grupos revolucionários - ou seja, grupos de tendência liberal, opostos ao regime monárquico absolutista fortalecido pela Restauração de 1815. A sua atuação íntegra e imparcial rendeu-lhe a fama de seriedade e honradez. Mas, por outro lado, sua recusa em compactuar com as manobras planejadas por burocratas empenhados em ascender hierarquicamente com rapidez, tornaram-no alvo de rancor e desejo de vingança. Assim foi que, antes da publicação do Mestre Pulga, circularam rumores (aliás, corretos), segundo os quais o autor teria utilizado em seu conto passagens extraídas de processos jurídicos verdadeiros. Depois de apreendido o manuscrito, o conto foi publicado com alguns trechos censurados (reencontrados apenas em 1906), e o autor processado. A morte de Hoffmann, causada por uma doença na medula espinhal que o deixara parcialmente paralisado, impediu-o de ouvir o veredito final sobre o seu caso.

v v v

O Pequeno Zacarias difere dos demais contos de fadas de Hoffmann pela variedade e amplitude de seus elementos satíricos e pelo destaque conferido a assuntos políticos, enquanto outros contos acentuam mais a crítica à sociedade nos seus aspectos culturais.

Para entendermos melhor esse conto, escrito em 1818 e publicado no ano seguinte, devemos ter em mente as condições históricas da época vivida por Hoffmann. Após a derrota de Napoleão em 1815, os representantes das diversas nações européias reuniram-se no Congresso de Viena, o qual visava redefinir as fronteiras nacionais. Politicamente, a Alemanha nessa época ainda não era um estado unificado, mas um aglomerado de pequenos reinos e principados, cada um com seu próprio conjunto de leis, moeda, sistema alfandegário, etc.

Dentre esses reinos destaca-se a Prússia como uma das maiores forças militares e econômicas. É aqui que se desenrola a história do Pequeno Zacarias, ou seja, na Prússia do período da Restauração, época em que, sob os auspícios do Congresso de Viena, as monarquias européias e a aristocracia em geral agiam no sentido de barrar o avanço da tendência burguesa liberal, procurando reinstaurar os antigos direitos e privilégios contra os quais se levantara a Revolução Francesa. Dessa forma, podemos dizer que, no conto, os episódios referentes à perseguição sofrida pelas fadas e à roupa enfeitiçada de Fabian constituem uma denúncia contra o controle ideológico e a prática da violência empregados por esse governo autoritário e despótico que procurava garantir seu poder através da repressão e abuso dos direitos individuais.

Deve-se ainda lembrar que a posição de destaque da Prússia fora alcançada entre os anos de 1740 e 1786, quando governou Frederico II, o Grande. Esse monarca foi um "déspota esclarecido", defensor das idéias iluministas provenientes da França, que implantou uma série de reformas em seu reino. Quando lemos sobre a arrevesada instauração do "Iluminismo" por Paphnutius (uma série de medidas supostamente destinadas a trazer o progresso e eliminar o obscurantismo), não devemos imaginar que Hoffmann estivesse rejeitando o Iluminismo dos enciclopedistas, ou defendendo uma postura irracionalista. Seu objetivo é mostrar que o racionalismo propalado por certos grupos sociais (os governantes, oriundos da aristocracia) é equivocado e mistificador, levando em última análise não a uma libertação mas a uma opressão mais eficaz.

Como se vê no episódio da roupa enfeitiçada de Fabian, a liberdade de pensamento representa um perigo para um Estado que se sustenta, em parte, através do controle ideológico e que fomenta um racionalismo e um progresso apenas ilusórios, os quais não conduzem a uma reavaliação da situação política e à conseqüente eliminação dos privilégios da classe governante. Outro sustentáculo do regime é o aparelho burocrático, que fornece igualmente um importante apoio à burguesia, trazendo-lhe segurança financeira e garantindo-lhe prestígio social (por meio de empregos e cargos). Mas, nesse sentido, também aqui a burguesia é lograda: a ascensão hierárquica não obedece aos valores burgueses de eficiência e dedicação; os cargos mais proeminentes ficam restritos à aristocracia, ou então são ocupados por indivíduos que se valem de manobras escusas ou da adulação a seus superiores para serem promovidos.

Neste sentido, embora se considere racional, lúcida e, principalmente, progressista, a sociedade atém-se a valores ultrapassados e preconceituosos. Escrevendo em plena época da Restauração, quando o anseio por liberdade estava sendo sufocado pelo fortalecimento da monarquia, Hoffmann critica a ingenuidade dos grupos sociais que se curvam ante as imposições da aristocracia (o "Iluminismo" de Paphnutius), aceitando e até usufruindo da política de favores que reina em sua burocracia: Zacarias, apesar de sua incompetência, é promovido aos altos escalões do Estado, enquanto jovens eficientes e talentosos como Adrian e Pulcher são preteridos; Mosch Terpin também alcança altos postos não em função de seus méritos, mas pela influência de seu futuro genro; e, finalmente, Prätextatus von Mondschein procura angariar para si os méritos referentes aos trabalhos de seus subordinados. Tudo isso nos confere um indício manifesto de que o "encantamento" de Zacarias deve ser entendido como uma alegoria, uma forma velada de representar as fraudes e desonestidades reinantes na vida pública. Por extensão, a deformidade física e, principalmente, moral de Zacarias - uma vez que não é percebida nem desmascarada por ninguém - representa a deformidade de toda uma sociedade, incapaz de perceber e corrigir suas próprias deficiências.

Assim, o papel alegórico do encantamento de Zacarias é mostrar que aquilo que esta sociedade acredita ser real é apenas mera aparência ou ilusão. A incoerência das opiniões, julgamentos e atos revela o caráter extremamente frágil desta pretensa racionalidade, da qual os "esclarecidos" se gabam. E justamente estes são os mais iludidos por Zacarias, e os mais incapazes de dissipar a falsa impressão derivada de uma apreensão superficial dos fatos.

Hoffmann também acusa a hipocrisia e falta de escrúpulos no campo intelectual e científico. De fato, os intelectuais da Universidade de Kerepes, supostamente capacitados para desenvolver uma reflexão independente e crítica, submetem-se de bom grado ao edito do Iluminismo, convencendo-se da inexistência das fadas apenas porque Paphnutius assim o decretou. Ao aceitar um ponto de vista exteriormente imposto, o cientista fecha-se a novas especulações sobre o mundo, sua atividade restringe-se à mera classificação de fenômenos "autorizados" e a observação torna-se estéril, dado que o pesquisador não se pergunta sobre o motivo e o fim de sua investigação. Assim, Mosch Terpin limita-se efetivamente a uma mera atividade classificatória, que simplifica os problemas sem, na verdade, conseguir resolvê-los ou explicá-los, limitando-se a dizer o óbvio (por exemplo, que a escuridão provém da ausência de luz). Em vista disso, as "descobertas" de Terpin não servem ao progresso da ciência, mas ao enaltecimento de sua pessoa e ao sucesso de sua carreira pública.

O empirismo superficial e imediatista de Terpin está em direta contraposição às especulações abstratas de Ptolomäus Philadelphus. Enquanto Terpin se compraz em um experimentalismo irrefletido, Philadelphus baseia sua pesquisa no desdobramento de simples conjeturas acerca do objeto de estudo. Se para a "ciência" de Terpin falta um embasamento teórico e crítico, as "investigações" de Philadelphus estão desprovidas da indispensável base observacional. Por diversas que sejam suas metodologias, a vaidade e o desejo de autopromoção regem ambos os "cientistas", enquanto seus trabalhos revelam-se igualmente inúteis e nada objetivos.

Mas Hoffmann não critica apenas os burocratas e os intelectuais: também não escapam os cidadãos que dão sustentação para que esse estado de coisas permaneça. A cena em que os convivas se mostram desejosos de ouvir o poema de Balthasar - apenas porque já se inteiraram de todos os mexericos da cidade ou porque os comes e bebes ainda vão demorar a ser servidos - é um quadro satírico do horizonte cultural do pequeno burguês, fascinado pelo mundo das aparências e ansioso por subir na escala social. Pretendendo exibir um gosto pelas artes que na verdade não possui, o objetivo do pequeno burguês é apenas o da ostentação social, em uma tentativa burlesca de imitar o gosto e os hábitos das classes mais elevadas.

Enquanto revestida de uma imagem de progresso, a introdução do "Iluminismo" reproduz a escalada na sociedade dos valores burgueses, segundo os quais só é respeitável o que pode ser explorado para fins práticos e lucrativos. Contra esse pano de fundo, as fadas - que personificam a fantasia e sensibilidade poética - necessariamente são consideradas indivíduos inúteis ou mesmo prejudiciais. Paradoxalmente, são justamente os indivíduos ligados às fadas e aos elementos mágicos em geral - Prosper Alpanus e Balthasar - que desvendam o mistério do poder de Zacarias.

Todos os segmentos da sociedade encontram-se representados no Pequeno Zacarias de uma forma cômica. No entanto, a estrutura burocrática e o sistema político fundamentados nos privilégios da aristocracia, e a mentalidade retrógrada da pequena burguesia, são o principal alvo da sátira de Hoffmann. O emprego de expressões carregadas de ironia, a exibição de personagens e cenas grotescas e a descrição caricatural do sistema político e do meio sócio-cultural são os instrumentos básicos a serviço do autor na elaboração do texto.

Nada do que foi dito, porém, deve levar o leitor a esperar uma exposição enfadonha e moralista das mazelas da sociedade. A crítica é, por assim dizer, um aspecto a ser lido apenas nas entrelinhas. O Pequeno Zacarias é, antes de mais nada, um conto de fadas destinado a divertir e enlevar o leitor por algumas boas horas. Isso porque Hoffmann não opôs de maneira simplista o bem ao mal, mas buscou narrar as desventuras de nossos heróis com ironia e bom humor. O próprio personagem-título, o vilão da história - interpondo-se entre Balthasar e Cândida e valendo-se inescrupulosamente de seu dom mágico para "levar vantagem em tudo" - não deixa de, às vezes, despertar nossa simpatia. Balthasar, por seu lado, incorpora muitos trejeitos do poeta excessivamente sentimental e seu casamento com Cândida revelar-se-á ao final como um repositório de todas as virtudes burguesas tradicionais.

Zacarias não tem consciência do mal que inflige. Sua trajetória remete-nos ao próprio cidadão comum que, incapaz de ter uma visão mais ampla, almeja inocentemente apenas a sua felicidade pessoal e egoísta. Devemos lembrar-nos de que Zacarias só se torna de fato um "malfeitor" porque é incapaz de perceber seus erros e de corrigi-los. Tal como o restante da sociedade retratada por Hoffmann, ele se deixa guiar por interesses imediatistas, sem atentar para a responsabilidade de cada um frente à comunidade em que vive. Assim, ele funciona como um espelho dos erros de todos os demais, erros esses que são os responsáveis pela sua meteórica ascensão. Mas... Talvez seja chegada a hora de o leitor começar a ler a história de nosso anãozinho e, assim, tirar suas próprias conclusões.

 

Primeiro capítulo

 

Voltar à Página de Publicações

Voltar à Página de Traduções

Voltar à Página Inicial